A taxa de homicídios de mulheres no Brasil aumentou 31,46% no período de 1980 a 2019, passando de 4,40 (1980-1984) para 6,09 (2015-2019) a cada 100 mil mulheres, revelou um estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Instituto Nacional do Câncer (Inca) e pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A pesquisa empregou um método de correção ao analisar as mortes violentas de mulheres para tentar identificar violência de gênero. Desta forma, mostra o impacto desta correção nas taxas de homicídios femininos nas grandes regiões brasileiras segundo faixa etária, período da morte e geração à qual a mulher pertencia. Saiba mais.
O estudo Female homicides in Brazil and its major regions (1980-2019): An analysis of age, period, and cohort effects será publicado na revista Violence Against Women.
Identificar quando o assassinato de uma mulher é de fato um caso de feminicídio não é uma tarefa fácil. No Brasil, um país onde a legislação sobre o assunto ainda é recente, os dados disponíveis no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) não são suficientes para discriminar se estão relacionados à violência de gênero, quer seja pelas limitações dos próprios sistemas de informação, que não permitem avaliar a relação da vítima com o agressor, quer seja pelo fato de as forças policiais não necessariamente estarem preparadas para identificar esse tipo de ocorrência, ponderam os autores do estudo.
Diante dessa fragilidade, o artigo propõe o uso de indicadores indiretos para avaliar a violência de gênero, como por exemplo se o crime ocorreu dentro da casa da vítima e por uso de arma de fogo. Em todos os indicadores indiretos, se evidencia aumento das mortes violentas de mulheres com maiores taxas entre as jovens e maior proporção na população negra.
Existe uma alta frequência de registros de óbitos por causa violenta classificados como “intenção indeterminada” e problemas de notificação, o que leva a crer que os números são subestimados. Na Região Norte, por exemplo, esse tipo de ocorrência foi maior 49,88% do que o apontado pelo governo. Isso representa 6,46 mortes violentas de mulheres para cada 100 mil habitantes e não 4,31/100.000 como mostra o SIM. O Nordeste vem logo em seguida, com aumento de 41,03% (passando de 5,58 para 7,87 óbitos por 100 mil habitantes). O menor índice foi observado na Região Sul, embora também tenha sido registrada diferença para cima de 9,13%.
O Sudeste registra uma média de 3,45 assassinatos para cada 100 mil mulheres, enquanto o Centro-Oeste aparece com 8,55 a cada 100 mil. “Vale ressaltar que esta última região, mais Nordeste e Norte, apresentam coeficiente acima da média nacional”, diz o texto. Sul e Sudeste, portanto, aparecem abaixo da média nacional. Resultados semelhantes são observados quando analisadas as mortes de mulheres por armas de fogo: a média nacional está em 2,57 para cada cem mil, variando de 2,01 no Sul para 3,28 no Centro-Oeste.
“Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) óbitos acima de 3 já caracterizam a região como de extrema violência para as mulheres. As regiões Centro-Oeste e Norte apresentaram taxas semelhantes às de países como Guatemala e El Salvador”, explica Karina Meira, pesquisadora da UFRN e coordenadora do estudo.
As brasileiras com idades entre 20 e 39 anos enfrentam maior risco de sofrerem violência repetidamente, agressão ou de serem assassinadas do que mulheres de outros grupos etários. O estudo mostra também que a taxa de mortalidade média de homicídios por arma de fogo tem um aumento progressivo a partir do grupo de 15-19 anos até o de 40-44 anos, decrescendo após o de 45-49 em todas as regiões do país.
“Este nosso estudo traz um olhar diferente. O Brasil é um país muito grande, com diversidades de toda ordem: de cultura, racial, geográfica… Olhar para o feminicídio sem olhar essas características acaba fazendo a gente ver o Brasil como uma média, o que não traduz a realidade do país como um todo”, conta o pesquisador da Fiocruz Raphael Guimarães, que assim como Karina participa do Grupo de Trabalho de Violência da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e é coautor do estudo. Raphael explica que esse olhar segmentado ajuda a compreender e dar subsídios à formulação de políticas públicas mais direcionadas e eficazes.
A morte violenta de mulheres muitas vezes aparece classificada como “intenção indeterminada”, ou seja, sem indicar se foi acidente, suicídio ou causada por terceiros. Por isso foi preciso aplicar técnicas de correção. A correção dos dados do registro de óbito do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Sistema Único de Saúde (SIM/Datasus) demonstrou que as taxas de homicídio de mulheres foram subnotificadas no Brasil num período de 40 anos (1980 – 2019). A pesquisa atualiza os números e mostra que esse tipo de crime foi maior 28,62% do que o apresentado pelo SIM.
“No Brasil, os principais métodos empregados no assassinato de mulheres foram o uso de armas de fogo, objetos contundentes/perfurantes, estrangulamento e sufocação. É importante destacar que a tendência temporal dos homicídios com armas de fogo está relacionada a fatores associados à comercialização, circulação e aquisição dessas armas”, destaca a pesquisa. Uma redução nos assassinatos de mulheres no início dos anos 2000 no Sul e no Sudeste estaria, portanto, relacionada ao Estatuto do Desarmamento e à Lei Maria da Penha, além de outros fatores.
O local também influencia. Uma mulher com autonomia financeira em localidades em que a cultura patriarcal é mais conservadora enfrenta mais risco de sofrer violência doméstica do que mulheres com autonomia financeira em localidades em que há mais discussão sobre violência e que não seja tão conservadora. “Quem rompe com o papel de submissão nessas comunidades se torna um alvo. Essa comunidade vai usar de todos os meios para mostrar que as mulheres devem voltar ao seu papel de submissão. Daí a dificuldade de romper com o ciclo de violência. Isso não é uma questão de indivíduo, mas de Estado”, diz Karina.
Mulheres no Sudeste, por exemplo, contam com uma rede de apoio maior. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que em 2019 apenas 137 dos 5.570 (2,4%) municípios brasileiros tinham abrigos para mulheres em situação de violência doméstica, concentrados principalmente no Sul e no Sudeste. “Menos de 10% dos municípios brasileiros ofereciam serviços especializados para agressão sexual, e somente 8,3% das cidades apresentavam delegacias especializadas para o atendimento às mulheres. De 2017 a 2019, houve redução de 75% no repasse de verbas para o combate à violência contra mulheres. Não basta ter dispositivos legais se não tiver financiamento para a proteção”, ressalta Karina.
Os índices variam ainda de acordo com a raça. Entre 2009 e 2019, o Brasil registrou uma redução dos homicídios de mulheres brancas, e um aumento entre mulheres pretas. Em 2019, uma mulher negra sofria um risco 1,7 vez maior de ser assassinada, em geral. “Raça, gênero e desigualdades sociais se intensificaram nas regiões mais pobres do país – Norte e Nordeste. Em 2019, uma mulher preta vivendo no Rio Grande do Norte encarava um risco 5,1 vezes maior de ser assassinada do que uma mulher não negra”,diz o artigo.
Raphael lembra que esses números estão relacionados apenas a homicídios. “A morte é o evento mais extremo. A quantidade de mulheres pretas vítimas de agressão é maior ainda. Mulheres que sofrem violência dia após dia, que não necessariamente evolui para morte, mas que tem efeitos graves para suas vidas”, destaca o pesquisador da Fiocruz. “Nosso artigo pode funcionar como indutor para começarmos a avaliar dados de mulheres que não tenham morrido, mas tido um profundo prejuízo em suas vidas em decorrência da violência de toda ordem: física, psicológica, sexual, intradomiciliar. Pode ser ponto de partida para esmiuçar melhor essa questão”, acrescenta.
O artigo ressalta que “medidas são urgentemente necessárias para proteger mulheres em situações de violência. A expansão do financiamento para programas de prevenção à violência contra mulheres também é necessária, ao lado de medidas para reverter o desmantelamento do Estatuto do Desarmamento, já que a existência de uma arma em casa é um dos maiores fatores de risco para a violência de gênero e o feminicídio”, conclui a pesquisa.
(com Fiocruz)
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