O início das festas juninas pelo país revelou um movimento que vem crescendo e preocupa quem luta para manter vivas as culturas regionais: o crescimento dos shows sertanejos em festas populares que não nada tem a ver com essa modalidade. O assunto ganhou destaques nas redes sociais após o desabafo do cantor Flávio José, ícone do forró pernambucano, que teve seu show reduzido na festa de São João de Campina Grande, para dar mais espaço ao astro Gusttavo Lima.
A tradicional sanfona do Forró nordestino, por exemplo, ou a milonga e a valsa rancheira no Sul do país, estariam perdendo espaço nas festas regionais, argumentam artistas.
No lugar de danças tradicionais, shows folclóricos e apresentação de cantores locais, grandes nomes da música sertaneja têm sido preferidos nos contratos feitos por prefeituras. O fenômeno é chamado de “invasão cultural”.
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, por exemplo, o sertanejo ultrapassou até o forte tradicionalismo gaúcho. O Parque Harmonia (Parque Maurício Sirotski Sobrinho, conhecido por abrigar as festas típicas que antecedem as comemorações da Revolução Farroupilha (em setembro), tem servido de palco para shows sertanejos.
Para o Chefe do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Carlos Anísio, essa invasão de sertanejos pelo país é resultado da superexposição desses artistas na mídia.
“Eles compram espaços enormes na mídia, estão presentes em todos os meios de comunicação, com poder econômico grande. O agronegócio está vinculado com o sertanejo, ou “breganejo”, investindo fortemente nesse setor. Então, jovens brasileiros conhecem muito mais as músicas sertanejas, já que elas tocam mais na TV, na internet, nos streamings. Segue uma lógica mercadológica. Por isso essa vinculação com o povo brasileiro”, explica.
Carlos Anísio também contrapõe o argumento, usado pelas prefeituras, de que a diversificação cultural é positiva mesmo em festas tradicionais. “Não há reciprocidade. Os artistas nordestinos, por exemplo, não conseguem tocar na festa de peão de Barretos, por exemplo”.
A discussão sobre “invasão cultural”, principalmente nas festas de São João, não é nova. Em 2017 diversos artistas pernambucanos fizeram uma campanha “Devolva meu São-João”, encampada por Joquinha Gonzaga (sobrinho de Luiz Gonzaga), Chambinho do Acordeon, com apoio Elba Ramalho.
Elba também falou sobre a falta de reciprocidade nessa “mescla de culturas”.
Flávio José, artista renomado no forró nordestino, astro do desabafo durante a maior festa de São João do Planeta, realizada em Campina Grande, abriu caminho para uma nova discussão sobre o rolo compressor do mercado sertanejo, tomando cada vez mais espaço nas festas de tradições regionais.
O professor Carlos Anísio diz que a desconfiguração das grandes festas de São João, em Campina Grande (na Paraíba) ou Caruaru (em Pernambuco) não se dá apenas pela música – e invasão de sertanejos -, mas também na alteração de costumes e comidas típicas.
“No lugar do milho, da pamonha, da canjica, bolo de macaxeira, que são comidas regionais e típicas das festas juninas nordestinas, agora vemos hamburger, pizza… não é só na música que acontece essa desconfiguração. O prejuízo é brutal e também chega para o pequeno artesão, o agricultor, aquele que pega a sanfona e aproveita esse período do ano para ganhar um trocado tocando nas festas típicas”, explica.
Para o estudioso, ao descaracterizar um festa popular, arraigada na tradição, perde-se parte da história daquele povo.
“É comum que o nordestino que foi para a capital volte para o interior, para reviver as festas típicas. É essa volta ao ninho, que é muito importante. Famílias inteiras fazem suas próprias festas, num movimento importante para a tradição, para reativar a sua cultura. Essa tradição vai dizer quem você é, de onde você saiu e vai reativar os seus valores”, argumenta.
Carlos Anísio faz um convite: se quiser conhecer o São João “pé de Serra”, procure as festas genuinamente populares no interior nordestino. Por lá o “breganejo” mercadológico ainda não modificou a paisagem e os costumes locais.
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